“… he resolved never again to kiss earth for any god or man. This decision, however, made a hole in him, a vacancy…” Salman Rushdie in Midnight’s Children.
holehorror.at.gmail.com

27.11.07

Rio das Flores 2

Não me pronuncio sobre o rigor histórico, que para mim em última análise é irrelevante, e as quase quinze páginas de bibliografia não impressionam. O que não é irrelevante é o tom com que essa História nos é dada ao longo do romance. Longas e demasiadas explicações num tom por vezes doutrinal que não escondem um um propósito pedagógico qualquer e que trata o leitor de uma forma paternalista como se fossemos uns ignorantes a precisar de ser ensinados, o que torna enfadonhos esses longos momentos e resultam numa dispersão da atenção do leitor que não consegue deixar de pensar que está numa série de múltiplas sessões de esclarecimento. Há uma sensação que ultrapassa a familiaridade e é mesmo de déjà vu nas conversas políticas entre personagens, com um sabor demasiado actual (em sentido histórico), o sabor que está ancorado nos anos 70 - um exemplo é o diálogo sobre pintura e comunistas que começa na página 235, e que soa estranho saindo da boca das personagens nas primeiras décadas do século passado. Grande parte das passagens históricas maçaram-me, considerei-as pouco esclarecedoras do ponto de vista histórico e excessivas do ponto de vista literário, e dei por mim a saltar parágrafos, nomeadamente nas intermináveis páginas sobre política brasileira dos anos 20 e 30.

Creio que este exagero em mostrar trabalho histórico esconde alguma falta de esforço e exigência literários nomeadamente ao nível das personagens que são poucas e pobres e que por isso dão pouca vida ao ambiente social em que se mexem. O romance, é pouco romance, tem pouca consistência, e é pouco abrangente. No fundo, e em termos literários, estamos perante uma novela com grandes explicações históricas pelo meio, que um objecto bem diferente de um romance histórico. Este é talvez o ponto mais fraco do romance e o equívoco do autor.

As personagens, como já referi, são poucas, pobres e bidimensionais, sem profundidade nem densidade suficiente para carregarem aos seus ombros o “fardo” de uma saga familiar e social. Valmonte, como personagem, parece mais forte do que quem a habita. Diogo é uma fraca personagem principal de quem se aprende a não gostar e que, com o desenrolar do enredo, vai desencantando. Rapidamente desenvolvemos alguma indiferença em relação a ela, ao seu tédio, aos seus anseios de liberdade, à sua inconstância. Nunca nos marca, nunca nos apercebemos nem vivemos a intensidade dos seus dilemas, do peso das suas opções. Há hiatos temporais em momentos decisivos da narrativa e da evolução das personagens, sobretudo nas três personagens principais: a decisão final, ou a inevitabilidade do Brasil para Diogo, o sofrimento de Pedro, quer depois de Angelina quer quando fica ferido, a solidão de Amparo, e a sua opção pelo local e não pela pessoa. Pedro, talvez porque mais simples, menos exposto e menos dado a inconstâncias e insatisfações, é um pouco mais trabalhado e parece ter outra profundidade que Diogo não tem, bem como parece, desde cedo, ter a marca da inevitabilidade do seu destino: a terra, Valmonte e Portugal. Amparo e Maria da Glória são dois bons projectos de personagens, duas promessas mas ficam por aí. MST parece ter um problema com as personagens femininas (tal como em Equador) e nunca lhes faz justiça: começa com um bom esboço, mas acaba num estereótipo. Amparo, pelo menos merecia melhor. As personagens, e muito especialmente as femininas, são outro dos pontos fracos do romance. A história da família evolui de uma forma que vai sendo previsível.

Dito isto, e repetindo-me, reforço a ideia de que o livro desencanta um pouco o olhar exigente, mas lê-se bem e MST sabe escrever de uma forma que agrada, com uma linguagem acessível e usa algumas técnicas narrativas como os flash-backs com sucesso. Há alguns lugares comuns a nível da linguagem como o já célebre “quem nunca sofreu por amor nunca aprenderá a amar”, ou “juventude é beleza e beleza é juventude” (pág.593), ou um “faz de mim o que quiseres!” (pág 601), que às vezes custam a ler. O romance não sendo nenhuma peça literária marcante não é, no entanto, nem pateta nem patético e por isso espero sinceramente que MST venda muitos livros e que estes dêm prazer a muita gente.

Arquivo do blogue

Acerca de mim

temposevontades(at)gmail.com