Cambridge Spies é uma produção da BBC de 2003 sobre a vida dos famosos quatro amigos ingleses que foram espiões ao serviço da União Soviética: Anthony Blunt, Kim Philby, Guy Burgess, e Donald McLean que, especialmente durante a Guerra Fria, traem o seu país fornecendo informação ao KGB, e cuja extensão da verdade das suas vidas (até aí só se sabiam pedaços) deixou o Reino Unido em estado de choque no início da década de 80. Tão difícil que era acreditar que um dos “nossos” (quanto mais quatro) fosse capaz de trair o país. Parece enredo de filme, mas como alguns de nós sabemos, a realidade ultrapassa quase sempre a ficção. Este é um dos casos.
Pensei que ia ver mais espionagem, isto é, mais luz sobre o mundo escuro e cheio de perigo, manipulação, suspeitas, tráfico, duplicidade, traição e jogos que acreditamos ser o mundo da espionagem. Mais idas e vindas, mais fugas, esconderijos, mais segredo e sobretudo mais conflito, com eles próprios, com os seus contactos e com o mundo. Nesse sentido fiquei um pouco desiludida com o tom “light” da série, que pouco mais faz do que dar umas pinceladas em tons luminosos, e se esquecer algum luxo e glamour, às vidas tortuosas destes homens. Tudo parece demasiado fácil: tornar-se espião, tornar-se credível perante os seus compatriotas, merecer confianças de um lado - instituições do RU - e de outro - KGB e Moscovo, que nunca terão confiado totalmente neles - penetrar no MI5 e MI6, passar informação, enganar e viver uma vida aparentemente normal e sem grandes cuidados. Não se percebe bem, por exemplo, o que fizeram os quatro, como cidadãos britânicos e espiões ao serviço de Moscovo, durante a Segunda Guerra Mundial, pois a série é bastante omissa sobre esse período, deixando implícita, mas não convincente, como explicação o facto de Reino Unido e União Soviética terem sido aliados contra Hitler.
A série termina cedo: não mostra o choque cultural e pessoal que terá sido a chegada a Moscovo de três deles (McLean, Burgess e Philby) e a sua adaptação, ou não, a um estilo de vida tão diferente daquela que eles conheciam, amavam e da qual eram “elite” e privilegiados. Não há também referência à vida de Blunt que permaneceu em Inglaterra onde fez uma vida ligada à História da Arte, e a quem foi dada uma condecoração (knighthood) que mais tarde, e ao conhecer-se toda a história de espionagem que chocou a Grã-Bretanha e que o(s) expôs, lhe foi retirada pela Rainha por influência de Margaret Thatcher.
Sobra por isso aquilo que a BBC sabe fazer melhor: o retrato de um período, ou melhor, de vários períodos da vida do século XX na Inglaterra e das suas instituições, nomeadamente a Casa Real e o Foreign Office. Sobra o tratamento das recorrentes questões de classe “us” (Eton, Trinity Colledge Cambridge...) and “them” (por exemplo, os americanos por quem sentem um leve desdém), não no sentido exclusivo de classe social, mas antes num sentido de uma elite social e cultural que está “in charge” do país, ou melhor, das instituições que sustentam o país, que ao contrário dos políticos que vão e vêm, se mantém. Esta questão às vezes parece demasiado explicada, mas talvez os mais jovens necessitem dessa componente explicativa, não faço ideia. Sobra a história de uma amizade que une os quatro homens mas cujo desfecho (da amizade) ficamos sem saber, apesar da amargura que se adivinha; sobram pequenos e deliciosos retratos da vida despreocupada e privilegiada na sociedade inglesa; sobra alguma intriga diplomática; sobra o peso, que se carrega, às vezes já sem saber porquê (coisa que eles regularmente tentam lembrar), de uma decisão tomada na juventude e que vincula inexoravelmente para a vida. Sobram inúmeros momentos do melhor humor: a greve dos empregados de mesa em Trinity Colledge, a entrevista de Burgess para trabalhar na BBC, entre outros. Sobra uma representação sólida e boas actuações, destacando-se sobretudo dois excelentes actores: Tom Hollander e Toby Stephens respectivamente nos papeis de Guy Burgess e de Kim Philby.
Finalmente, e como não poderia deixar de ser a abrir e a concluir a série, sobra o hino à “englishness”, ou não fossem eles uma parte inquestionável do “us”. Ontem e hoje, sempre Jerusalém de William Blake