“… he resolved never again to kiss earth for any god or man. This decision, however, made a hole in him, a vacancy…” Salman Rushdie in Midnight’s Children.
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22.12.07

A propósito do Acordo Ortográfico

Não sinto nenhum tipo de paixão acerca do acordo ortográfico nem sequer curiosidade suficiente que me leve a lê-lo. Considero-o sobretudo um acto político, pois acredito que as línguas não se mudam nem evoluem por decreto ou acordos. E a minha visão é tão simples que raia o simplismo: desde que não me obriguem a escrever “ato” em vez de “acto”, ou a escrever esporte em vez de desporto, eu até digo sim ao acordo que tudo parece permitir porque, em última análise, será irrelevante. As línguas não se mudam no papel, nem sequer porque as elites gostam ou não, no entanto uma vontade de uniformização de critérios de aceitação de diferentes ortografias não me parece condenável. Por duas grandes razões: a primeira decorre de uma verdade de lapaliciana - a de que uma língua é um organismo vivo que evolui sempre, e quem conheça um pouco a sua história, no nosso caso da língua portuguesa, sabe que hoje se escreve e fala diferentemente do que se fazia há cem, duzentos, quinhentos anos, e por aí fora. A segunda razão prende-se com a inevitabilidade da globalização e de uma aproximação com todas as comunidades que falam as várias formas de Português, e com o peso que queremos que o Português tenha a nível mundial que depende essencialmente do peso quer em termos numéricos, quer em termos de influência no mundo, do Brasil e do português do Brasil.

Se olharmos com atenção para o português que falamos hoje notamos, sem esforço nenhum, a enorme influência que o “brasileiro” tem exercido na nossa língua desde que Gabriela Cravo e Canela inaugurou o período de importação de telenovelas e impôs um novo paradigma da língua nas casas portuguesas. De repente começaram a contar-se “estórias”, e ninguém protestou. Hoje quem é que fala na “bicha” de trânsito, ou na “bicha” para comprar bilhetes para o concerto? Era esta a nossa maneira de falar, mas a influência do Brasil, quer através da televisão quer por causa do peso da imigração, obrigou-nos a mudar para um mais prudente “fila” em todas as circunstâncias; o que não falta são exemplos. O mesmo se passa com “cara” que a pouco e pouco vai ficando cada vez mais “rosto” e ninguém protesta. Já ninguém cora ao dizer “amo-te”, algo impensável há duas décadas atrás. “Rapariga” está muito enraizado, mais do que os outros exemplos, mas um dia virá em que quase só teremos moças neste país, e rapariga será vocábulo a evitar. Quando esse dia chegar, acredito que já escreveremos ato, Vitor, batismo, e não teremos escapado aos “k”s e os “x”s que invadirão não só o português, mas tantas outras línguas. A LME (Lei do Menor Esforço) é uma das leis mais poderosas do universo, e a língua é uma das áreas em que ela se manifesta de forma mais notória. Quem quiser olhar para trás, já pode ver como será o futuro.

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