“… he resolved never again to kiss earth for any god or man. This decision, however, made a hole in him, a vacancy…” Salman Rushdie in Midnight’s Children.
holehorror.at.gmail.com

31.7.07

Encosta-te a Mim

Encosta-te a mim,
nós já vivemos cem mil anos.
Encosta-te a mim,
talvez eu esteja a exagerar.
Encosta-te a mim,
dá cabo dos teus desenganos
não queiras ver quem eu não sou,
deixa-me chegar.
Chegado da guerra,
fiz tudo p´ra sobreviverem nome da terra,
no fundo p´ra te merecer
recebe-me bem,
não desencantes os meus passos
faz de mim o teu herói,
não quero adormecer.
Tudo o que eu vi,
estou a partilhar contigo
o que não vivi, hei-de inventar contigo
sei que não sei às vezes entender o teu olhar
mas quero-te bem, encosta-te a mim.
Encosta-te a mim,
desatinamos tantas vezes.
Vizinha de mim, deixa ser meu o teu quintal,
recebe esta pomba que não está armadilhada
foi comprada, foi roubada, seja como for.
Eu venho do nada porque arrasei o que não quis
em nome da estrada, onde só quero ser feliz.
Enrosca-te a mim, vai desarmar a flor queimada,
vai beijar o homem-bomba, quero adormecer.
Tudo o que eu vi,
estou a partilhar contigo, o que não vivi,
um dia hei-de inventar contigo
sei que não sei, às vezes entender o teu olhar,
mas quero-te bem.
Encosta-te a mim.
Quero-te bem.
Encosta-te a mim.

Jorge Palma

Encosta-te a Mim

Liquefação

Salvador Dali revela-se sempre uma grande, e previsível, ajuda para ilustrar a liquidez e a plasticidade do tempo. Na sua série de quadros sobre o tempo com relógios líquidos, entramos no domínio da metáfora do tempo que passa, na relatividade do tempo que se vive, mais do que no domínio da ciência exacta, há quem lhe chame arte, da medição do tempo. Mas medir o tempo é um dos mais antigos fascínios da humanidade.

Do Tempo

Fico perplexa de cada vez que sei que alguém de vinte e poucos anos lança uma biografia. Desta vez é Pedro Mantorras a lançar a sua. Se biografia é escrever a vida, eu desejo uma longa vida a todos, Mantorras incluido, o que tira sentido ao que se pode escrever aos vinte anos por muito interessante que seja, e eu até parto do princípio que Mantorras terá histórias interessantes a contar. Poderão ser memórias de infância, ou o caminho até ao sucesso e fama - valores tão na moda e tão vendedores de livros, poderão ser milhares de pretextos, mas biografia? Parece dum pretenciosismo algo pesado para uma pessoa tão nova com uma vida pela frente.

Perguntaram-me há dias há quanto tempo tinha tirado a carta de condução. Não faço ideia, tenho que pensar, respondi. Depois percebi que para quem tirou a carta há três ou quatro anos, já passou uma eternidade. Para quem tem que pensar, parece que foi ontem, e que tem uma vida a viver.

30.7.07

Hoje há luar 3

Ingmar Bergman



Nunca me interessei muito pelo existencialismo, aquele existencialismo típico das décadas de 50, 60 e 70, vivido entre dois cigarros, uns papeis e livros, e um café num bistrot emblemático de Paris. Não falo nos movimentos filosóficos que estiveram na origem dessas correntes e que, infelizmente, conheço mal. Li com enfado alguns dos autores que tive que ler; Sartre, por exemplo era-me insuportável. Digo era, no passado, porque já morreu, porque nunca gostei do homem que era nem do que ele representava, e sobretudo porque nunca mais o li. No entanto guardo boas memórias de algumas obras literárias como L’Etranger de Albert Camus ou La Condition Humaine de André Malraux que foram obras que li avidamente, sobretudo esta última. Ingmar Bergaman, um homem que deixou uma vastíssima e rica filmografia, foi sempre tido como um produto do existencialismo nórdico, mais cinzento, que não do fumo do cigarro note-se, e menos folclórico do que o francês, e alguns dos seus filmes, por exemplo Persona ou a série Cenas da Vida Conjugal demonstram-no bem: a existência, a mortalidade, a liberdade, a sociedade enquanto condicionadora dessa liberdade, a solidão, a expressão da sexualidade. Nem sempre gostei de ver os seus filmes: alguns acabavam por se revelar lentos, um pouco parados e até deprimentes, mas sempre reconheci quer o seu talento, quer a profundidade das suas reflexões e temas que trazia para a sua obra. Eu, é que nem sempre estava (nem estarei, presumo) disponível para o apreciar devidamente.

Mas há duas obras dele que me marcaram bastante. A série Fanny e Alexandre pela beleza, pela nostalgia de um passado e de uma família que se pensa e sonha e O Ovo da Serpente, talvez o mais “americano” dos seus filmes e por isso talvez também o menos bergmaniano. Este último é passado em Berlim entre as duas guerras mundiais, e eu sempre gostei de filmes passados em Berlim nessa época - Cabaret de Bob Fosse, Berlim Alexanderplatz de Fassbinder, uns dos mais conhecidos. Foi um filme que transmitiu muito bem a insegurança que se vivia então, com dois actores notáveis (Liv Ullman e David Carradine), e que me me assustou e perturbou do início ao fim quando o vi pela primeira vez tal o ambiente de medo, de desconfiança e de terror que ele descreve com os primeiros passos das bizarras e terríveis experiências médicas nazis feitas, neste caso e nesta altura, ainda à população em geral e não exclusivamente orientadas para determinados grupos, por exemplo os judeus, são o tema do filme.

A morte hoje de Ingmar Bergman acaba por ser um pretexto para lembrar a sua obra, o que dela conheço e desconheço bem como o que mais gostei e mais me tocou.

29.7.07

Coisas que se podem fazer ao Domingo 7

Le Discophore
Séc. I - II A.D. (?)
(Clicar para ver melhor)


Esperar

28.7.07

Quem estivesse com receio de deixar de ver o Primeiro-ministro em Portugal por causa da Presidência da União Europeia fica depois desta semana mais tranquilo. Primeiro a distribuição de computadores aos portugueses, depois a distribuição de quadros interactivos e de computadores pelas escolas, depois a apresentação do projecto Casa Pronta, seguida de uma entrevista à televisão, canal SIC. Hoje, sem descanso, José Sócrates está no Algarve para apresentar um programa de novos investimentos no sector do turismo e no sector da saúde, enfim tornar o Algarve mais “All”.

José Sócrates pode não governar, mas a máquina da propaganda, entre apresentação, entrevistas e declarações, para quem ainda tivesse dúvidas, mostra-se profissional, eficiente e bem oleada.

25.7.07

Plataforma contra a Obesidade 15

Jan van de Velde (1620-1662)
Still Life: A Goblet of Wine, Oysters and Lemons

24.7.07

Combate ao Sedentarismo 31

Do Vazio

Depois de ter escrito o post anterior vi na televisão o nosso Primeiro-ministro a entregar simbolicamente numa sala encenada e com figurantes a fazerem de alunos, quadros interactivos e computadores. Fico satisfeita que as escolas tenham bons computadores e que as crianças os incorporem no seu dia a dia e no seu processo de aprendizagem, mas acreditar e fazer-nos crer que estes equipamentos são fundamentais para o sucesso escolar e aprendizagem é mais um preocupante sintoma do vazio que enche tantas cabeças daqueles que nos governam e, neste caso, que decidem a política educacional.

O quadro interactivo e o seu funcionamento e potencialidades serão o centro de atenção da sala de aula. A interactividade vai passar por explorar o quadro e, mesmo que involuntariamente, vê-lo como um fim em si mesmo e não como um veículo nulo como até hoje tem sido o quadro preto. A interactividade desejada, eu diria mesmo a indispensável para uma boa aprendizagem, é sempre a que passa entre o professor e o aluno. Claro que é mais difícil do que depender de um quadro interactivo e computador: requer, para o professor, preparação, dedicação, trabalho e capacidade para acolher o aluno, com todas as suas capacidades e sobretudo potencialidades, mas também requer disciplina, atenção, esforço e trabalho por parte dos alunos. Sem estes ingredientes, por muitos quadros interactivos que haja, não há aprendizagem que sedimente e dê fruto. Mas de facto, o que é que interessa o conhecimento e o saber perante o manuseamento de um quadro interactivo?

Dando Excessivamente sobre o Mar 6

Auguste Renoir
La Vague 1879
(clicar para ver melhor)

23.7.07

O vazio

Paris Hilton, a jovem loira que tão bem ilustra o valor da celebridade hoje sendo célebre por ser célebre, esse ícone cor-de-rosa do nada, é uma das figuras mais mediáticas e a mais escrutinada e seguida do planeta. Revistas, jornais, televisões, internet e livros: nenhum meio escapa ao poder desta loira que todos querem conhecer. Longe vão os tempos em que se queriam conhecer as pessoas pelos seus feitos, pelas suas obras, pelas suas ideias ou até pela sua personalidade. Agora os parâmetros são outros, o que talvez ajude a explicar o fenómeno de ascensão à celebridade de pessoas tão improváveis. O mesmo se passa no meio político e Portugal não é excepção.

Os líderes políticos que se impõem e se reconhecem facilmente quer pela força da sua visão e projecto, quer pelas suas convicções e ideias, ou mesmo pelas suas personalidades complexas e tantas vezes polémicas, trazem com eles uma grandeza de quem viu, sabe, conhece e quer. Escapam às estratégias de marketing que coreografam posturas e gestos, que impõem slogans, tons de voz e tiques, e os preparam para serem um produto. Eles próprios são o seu marketing, a estratégia e a táctica e detêm uma autoridade própria. Parece que estamos em período de carência deste tipo de líderes, ou porque eles já não existem ou não querem, ou porque a própria sociedade evoluiu e já não os quer e prefere pessoas, que, tal como Paris Hilton, se fabricam e moldam para responder às expectativas mais simples, básicas e demagógicas. Hoje olhamos para Portugal, e mesmo para o mundo e vemos líderes políticos tépidos, que parecem ter saído de uma prateleira de supermercado depois do banho de marketing que os torna apetecíveis e facilmente consumíveis, apesar do sentimento de vazio e o som do oco. Têm um bom rótulo, mas a essência parece pobre, o conhecimento fraco e o talento discutível. Estudam Inglês Técnico em vez de Shakespeare ou Dickens e nem mesmo Bill Clinton, um homem com inegáveis talentos e capacidades, escapou à confrangedora banalidade ao consentir falar da sua vida íntima perante as câmaras de televisão; primeiro mentindo e depois pedindo desculpas ao país. Estamos no mundo do parece. Parece que é determinado(a), parece que sabe o que faz, parece ambicioso, parece que conhece os dossiers, parece informado.

22.7.07

Coisas que se podem fazer ao Domingo 6

Jean-Jacques PRADIER, Satyre et Bacchante 1834
(clicar para ver melhor)










outras duas perspectivas


Apanhar e seduzir bacantes. Coisas de adultos.

21.7.07

A Geração Harry Potter 2

Falei num post anterior do facto de uma franja da sociedade crescer com a saga de Harry Potter como principal referência literária, ou mesmo, em muitos casos, a única que terão. Confesso que prezo pouco, e venero nada, a tão valorizada literatura juvenil que enche hoje os manuais escolares de língua portuguesa e as prateleiras das secções “juvenis” das livrarias. Eu aprendi a língua portuguesa com os autores consagrados da língua e não percebo porque é que hoje os textos dos livros são todos “juvenis” na melhor das hipóteses, e imbecilo-infantis, com um tom moral politicamente correcto (o tom moral dos manuais antigos era de uma ingenuidade desarmante) como norma. Que é que se pode esperar de toda uma geração que engole a série “Aventura”, que parece não ter fim nunca (os editores lá sabem), dos 9 aos 14 anos? Ou das variantes infinitas de “Diários de...” que nada dizem que não seja mais do mesmo, forçando os “jovens” a fecharem-se ainda mais nos seus já de si grandes umbigos, mundos de bué, sms desenfreadas, respostas tortas e insolentes a tudo e todos e exigências múltiplas. Não quero dizer que os livros digam ou ensinem coisas “más”, eles até têm sempre uma óbvia componente paternalista e pedagógica, o que digo é que não ensinam nada de novo, não abrem horizontes - viver aventuras em cada canto de Portugal e em mais meia dúzia de países não é abrir horizontes - não ensinam nada que obrigue a pensar, não aguçam curiosidade nem engenho, não desenvolvem o espírito crítico, não ajudam a formar carácter.

Neste cenário a saga Harry Potter é ouro sobre azul pois está a anos luz da banalidade, previsibilidade e do mundo pequenino das gémeas da série “Aventura”, ou das Sofias e afins que escrevem o seu “Diário”, mas no entanto também não basta. Para crescer e amadurecer outras obras e outras referências são importantes, sobretudo é importante deixar o mundo da literatura “juvenil” e abrir os olhos para a literatura tout court. A nossa sociedade, ilustrada pela oferta de que dispomos, aposta muito em produtos jovens, que vão desde a literatura ao crédito – o crédito jovem hoje já vai até depois dos trinta anos. Parece que vivemos num mundo em que se adia o mais que se pode o crescimento, o amadurecimento, um mundo que se recusa a ser adulto.

20.7.07

Velas


Portugal vive momentos de esquizofrenia provocados pelo ímpeto legislativo do governo no que respeita a natalidade. Cinco dias depois da entrada em vigor da nova lei que regulamenta a liberalização do aborto, o governo anuncia programa de apoio à natalidade, também ele centrado em subsídios (abonos). Era bom que o governo tivesse uma ideia clara de como quer gastar o nosso dinheiro nesta área: se a promover e subsidiar o aborto ou se a incentivar a natalidade, assumindo que abonos e subsídios preconizados são a melhor forma de incentivar a natalidade – algo que gera um sem número de dúvidas. Enquanto contribuinte sinto-me perplexa e incomodada. Mais uma vez reforço a ideia de que, já que o aborto é liberalizado, quem quer abortar deve assumir a responsabilidade pelo acto que pratica e deve pagá-lo em vez de obrigar a sociedade a fazê-lo. Notícias como esta, em que num hospital se contratam dois obstetras especialmente para o efeito, (fazer abortos, entenda-se) num contexto de SNS em que tantos médicos e profissionais de saúde faltam para tantos outros efeitos que me dispensarei de inumerar, não deixam de revoltar.

Combate ao Sedentarismo 30

18.7.07

A Geração Harry Potter



Com algum preconceito e desconfiança abri o primeiro romance de J.K. Rowling da saga Harry Potter e fui surpreendida pela razoável qualidade do romance para além de rendida à teia mágica do enredo. Li assim num ápice os quatro primeiros romances pois o quinto ainda não tinha saído. Não faço ideia se ainda lerei o quinto, o sexto e o sétimo algum dia; logo se verá pois o ritmo foi perdido e não sei se o interesse é suficiente para compensar a falta dele. Os livros têm características que poderão fazer com que perdurem no tempo e, quem sabe, venham ao lado dos de Verne e de Tolkien um dia a ser considerados “clássicos” da literatura juvenil. Há uma história habilmente contada da vida de um jovem que aos dez anos descobre que é bruxo em que várias dimensões convergem: o seu passado, a origem e pertença, as relações com os outros, os colegas, os professores, a noção de bem e de mal, a força desse bem e desse mal, as hierarquias, o crescer, a adolescência e a passagem de criança para o mundo adulto, etc. Todas estas dimensões são devidamente exploradas e trabalhadas nos livros o que os torna ricos e suficientemente interessantes.

Já os filmes baseados nos romances, e sempre um filme por cada romance publicado, fazem apelo a outros factores. Tenho-os visto também e vi recentemente este último “Harry Potter e a Ordem da Fénix”, no meu caso, o primeiro filme que vejo sem ter lido o romance previamente. A produção é boa e os efeitos especiais também me pareceram muito surpreendentes, mas eu interesso-me pouco por “efeitos especiais” por isso acredito na provavel fragilidade do meu julgamento. Os actores estão cada vez melhores e é interessante vê-los crescer no ecrã, aliás reparei que a plateia na altura em que vi o filme era sobretudo composta por gente da idade dos actores, gente que tem crescido com Harry Potter e tem crescido tendo Harry Potter como a principal referência de leitura (há piores referências, mas não é sobre isso que escrevo) o que me leva a falar na Geração Harry Potter. No entanto ao ver o filme senti várias lacunas e graves falhas na narrativa para que se pudesse perceber o porquê bem como a interligação entre os diferentes momentos e episódios deste romance, ou mesmo desta história. Senti a falta da leitura do romance para apreender as ligações entre episódios tão marcantes como o afastamento de Dumbledore, a promiscuidade entre o o ensino de Hogwarts e o Ministério, as relações de poder dentro do próprio Ministério, a origem, a identidade e missão da Ordem de Fénix (o que dá o título ao livro e é quase irrelevante no filme), os pesadelos de Potter, o tão falado primeiro beijo de Harry Potter que parece surgir do nada, as relações entre os amigos, a memória e o peso do passado. O ambiente e rotina colegial de Potter e seus amigos desfaz-se um pouco também neste filme. Uma grande produção, com bons actores, mas francamente pobre em conteúdo para que possa satisfazer aqueles que encontram nos romances a essência e a compreensão do fenómeno Harry Potter.

16.7.07

Plataforma contra a Obesidade 14

Jan Davidsz. de Heem (1606 - 1683)
Still Life
(Clicar para ver melhor)

15.7.07

Dando Excessivamente sobre o Mar 5

Gustave Courbet
Les bords de la mer à Palavas
(clicar para ver melhor)

Na Praia de Chesil 4

É assim, não fazendo nada, que todo o curso de uma vida pode ser alterado.

Ian McEwan, Na Praia de Chesil

Na Praia de Chesil 3

Nada era nunca discutido e eles também nunca sentiam a falta de uma conversa íntima. (...) A linguagem e a prática da terapia, a aceitação de sentimentos diligentemente partilhados, mutuamente analisados, ainda não tinham entrado em circulação generalizada. (...) ainda não era habitual uma pessoa considerar-se em termos de quotidiano como um enigma, como um exercício de narrativa histórica, ou um problema à espera de ser resolvido.

Ian McEwan, Na Praia de Chesil


Coisas que se podem fazer ao Domingo 5

Antoine-Denis CHAUDET (1763 - 1810)
L'Amour


Apanhar borboletas.

14.7.07

Dando Excessivamente sobre o Mar 3

Gustave Courbet
Vue de la Méditerranée à Maguelone - 1858
(clicar para ver melhor)

13.7.07

Um privilégio

As últimas eleições legislativas não me entusiasmaram, não consegui querer a vitória de um dos candidatos e votar foi um desinspirado cumprimento de “dever cívico”. Nestas intercalares municipais em Lisboa, a vontade de cumprir o “dever cívico” é nula. Tudo à volta destas eleições me gera náusea: os candidatos, a campanha, os debates, as soluções, o discurso, as “ideias” sobre Lisboa. A falta de inspiração política, as ideias e soluções coladas à pressa ao discurso de campanha sem a solidez de uma visão amadurecida, as personagens saídas de um romance absurdo, umas ainda atordoadas e as outras teimosamente coladas ao seu fado, os chamados “interesses” cada vez mais despudoradamente visíveis, a voracidade com que se agarra o poder sem obrigar a reflexão ou jejum prévio, tudo junto me dá vontade de, pela primeira vez, não ir votar.

Claro que resistirei a este impulso, pois basta-me pensar em quão privilegiada sou por poder fazê-lo. Nalgumas sociedades, islâmicas por exemplo, não poderia votar, ou porque sou mulher ou porque, muito simplesmente, não há eleições livres. Por isso estarei atenta às sondagens de hoje para votar sem eficácia, presumo, contra aquele que sei que não quero que ganhe: António Costa.

Combate ao Sedentarismo 29

11.7.07

Na Praia de Chesil 2

A cólera dele atiçou a dela e, repentinamente, Florence pensou que percebia qual era o problema de ambos: eram demasiado bem educados, demasiado constrangidos, demasiado temerosos, andavam um à roda do outro em bicos de pés, a murmurar, a segredar, a diferir, a concordar. Mal se conheciam um ao outro, e nunca podiam fazê-lo por causa da manta de quase silêncio amigável que abafava as suas diferenças, e os cegava tanto quanto os aprisionava. Tinham sempre tido medo de discordar, e agora a cólera dele estava a libertá-la. Queria magoá-lo, puni-lo, a fim de se distinguir dele. Tratava-se de um sentimento tão pouco familiar nela, no sentido da emoção da destruição, que quase não conseguia resistir-lhe. O seu coração batia com força e queria dizer-lhe que o odiava, e estava prestes a pronunciar essas palavras duras e maravilhosas que nunca proferira na vida, quando ele falou primeiro.

Ian McEwan, Na Praia de Chesil

10.7.07

Plataforma contra a Obesidade 13

Camille Pissarro
Nature Morte (1872)

Na Praia de Chesil

Aquela ainda era a época – que viria a terminar mais tarde naquela famosa década – em que ser jovem era um estorvo social, uma marca de irrelevância, uma situação ligeiramente embaraçosa para a qual o casamento era o início de uma cura. Quase dois desconhecidos, ali estavam eles, estranhamente juntos, num novo pináculo de vida, rejubilantes por o seu novo estatuto prometer promovê-los permitindo-lhes sair da sua interminável juventude – Edward e Florence, enfim livres!

Ian McEwan, Na Praia de Chesil


Antes de ter lido o livro li um comentário na imprensa anglo-saxónica em que se falava deste pequeno romance como de uma resposta europeia a Everyman de Philip Roth. Eu também tive essa sensação. Roth, nomeadamente em Everyman ou Dying Animal, tem uma escrita potente cheia de “meaning”, enquanto que Ian McEwan tem uma forma de escrever mais elegante, um pouco mais contida, sem no entanto deixar de fluir de uma forma magnífica, que serve personagens belíssimas, mas também elas mais contidas e algo tensas no seu submundo de não ditos e de expectativas que as habita. McEwan é seguramente mais “europeu” e Ropth mais “americano”, tanto quanto estas etiquetas se podem aplicar, e ambos criam um pequeno mas intenso romance sobre ser e viver.

Na Praia de Chesil é um romance povoado de tensões e emoções, o espanto, o desejo, a espera, as expectativas, o desnorte, a inocência, o medo, a paixão, a perda, o amor, e claro, os “não ditos” que são, eles próprios, uma personagem central de pleno direito, e determinantes na construção da narrativa. Lê-se com muito prazer.

8.7.07

Coisas que se podem fazer ao Domingo 4

Jacques PROU
Amphitrite, 1705 - 1706
(Clicar para ver melhor)

Descansar na praia reclinada sobre um peixe.

6.7.07

Uma ideia da Europa 17

A máquina fotográfica, a fotografia, os postais ilustrados, as imagens, o cinema.

5.7.07

Dando excessivamente sobre o mar 2

Pierre-Auguste Renoir
Sunset at sea (1879)

3.7.07

Combate ao Sedentarismo 28

O Comendador

A omnipresença de Berardo na vida nacional e comunicação social é um paradigma do nosso (português) deslumbramento. Primeiro porque o Comendador está deslumbrado consigo próprio, e provavelmente terá razões de sobra para o estar, pois serão poucos a gabarem-se de conseguir o que ele conseguiu e tem conseguido, quer em termos financeiros, quer em termos de influência uma vez que ele veio de um meio menos favorável ao sucesso do que outros. E segundo porque o país, pelo menos uma parte influente do poder, está deslumbrado com ele, por razões que se me afiguram difíceis de perceber. Ser rico, só por si não justifica tanto deslumbre e atenção.

Esperava-se de um homem que conseguiu ir fazendo - e pelos vistos, apreciando, uma colecção de arte contemporânea como a que ele fez, alguma sensibilidade, e já agora algum bom senso também, bem como polidez, cortesia e mesmo contenção mas talvez estas expectativas estejam desfocadas do que hoje é valorizado quer pelo “povo” quer pelos media. Aparentemente neste campo o Comendador é omisso e aproveita cada migalha de luz de holofotes para mostrar falta de cortesia e modos rudes, é incapaz de resistir a um microfone sem se coibir em agredir e mesmo insultar este ou aquele com o ar seguro de quem sabe que pode pagar a conta, mesmo que tudo faça para não a pagar. Não questiono a pertinência dos seus motivos ou intenções ou mesmo opiniões, até quero querer que ele tenha muitas vezes razão, seja racional, lúcido e bem intencionado, mas condeno veementemente a forma como ele os veicula e faz valer o seu ponto de vista em todas as matérias que andaram, nestes dias passados, nas primeiras páginas dos jornais. Lamento também que a comunicação social o procure tanto, o filme tanto e lhe coloque um microfone perto da boca de cada vez que ele teima em “aparecer”.

1.7.07

Plataforma contra a Obesidade 12

Auguste Renoir,
Still Life (1908)


Depois de aqui ter louvado outro tipo de naturezas mortas, outra época, outra escola, outros parâmetros estéticos, deixo alguns comentários às outras naturezas mortas que tenho seleccionado, nomeadamente de Paul Cézanne e de Auguste Renoir. Nestas últimas os olhos não se deslumbram com o detalhe, mas perdem-se nas texturas, deixam-se enfeitiçar pela forma como a luz é capturada e projectada, espantam-se com as diversidade das cores, com a forma como ela é tratada e pintada. Parecemos ser mais donos da nossa percepção e por isso, em vez do deslumbramento, vemo-nos simplesmente enfeitiçados.

Coisas que se podem fazer ao Domingo 3

Jean-Pierre CORTOT
Le soldat de Marathon annonçant la victoire (1834)
(Clicar para ver mehor)

Correr para anunciar a vitória da maratona.

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