“… he resolved never again to kiss earth for any god or man. This decision, however, made a hole in him, a vacancy…” Salman Rushdie in Midnight’s Children.
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4.11.07

Tríade

Dos Lábios


Percebi pela silhueta frágil de leggings, túnica azul berrante e sapatos altos que não era uma mulher nova e pareceu-me que teria idade mais do que suficiente para exercer algum discernimento estético, coisa que não parecia fazer. Quando se virou, vi-lhe a cara e confirmei a minha suspeita. E notei algo estranho: um pormenor, coisa pouca mas suficiente para desequilibrar a harmonia de um rosto. Olhei com atenção e com o que tentei que fosse educada descrição, e percebi do que se tratava. O espaço que medeia a base do nariz e o lábio superior estava inchado, perdendo-se aquele desenho de uma covinha mesmo a meio e por cima do lábio superior. Tudo estava cheio e gordo, era uma protuberância que projectava o lábio superior, também ele um pouco inchado, de forma a lembrar um bico de pato. Dois dias mais tarde, ao abrir o Ípsilon, suplemento do Público vi na página 2 e 3, a propósito do lançamento de uma biografia não autorizada, uma fotografia da cara de Catherine Deneuve e notei que também ela tinha a parte superior do lábio de cima anormalmente inchado e também a lembrar um bico de pato. Não é a primeira vez que em fotografias de revistas cor-de-rosa se vêem protuberâncias a lembrar possíveis bicos de pato ou lábios anormalmente inchados, mas desta vez fiquei deveras intrigada a tentar perceber porque é que, segundo alguma norma estética que me escapa, um projecto de bico de pato é mais belo e desejável do que um lábio fino, mas com contornos definidos e expressão. Lábios como os da Angelina Jolie ou Scarlett Johansson não são muito vulgares e tê-los como modelo de referência torna a vida complicada a quem não os têm, e dificilmente algum dia terá, e a quem teve, mas já não tanto.


Do NarizOntem, enquanto zapava em frente à televisão vi um programa na SIC Mulher que se chamava Swan: uma coisa kitsch em que se transformavam em “cisnes” (haja bom gosto) mulheres que se consideravam feias. Parece que se tratava de um concurso – não percebi se era um reality show ou não – e tinha um ar mais pastoso e xaroposo do que outros semelhantes como o Extreme Makeover, por exemplo. A curiosidade venceu e vi durante uns minutos o dito programa: uma rapariga com excesso de peso e que nunca se sentiu bonita é transformada numa “bomba” sexy num espaço de três meses: fez dieta (excelente), exercício (melhor ainda), e pelo menos uma operação plástica. Trocou um nariz grande e que poderia parecer feio, mas que estava longe de ser um desastre, por um nariz de desenho animado, verdadeiramente artificial e ridículo na sua perfeição que parecia tirado de um mau catálogo de princesas Disney. O outro nariz, o original, não sendo de uma beleza evidente era o nariz dela: tinha carácter era diferente dos outros e sobretudo não era ridículo. A concorrente parecia emocionada e excitada com a sua transformação, mas nunca pareceu feliz, e eu pergunto-me como é que uma pessoa que sempre se sentiu feia e pouco feliz consigo, que se vestia de forma casual e sem gosto, de repente vive vendo-se na pele de uma bomba sexy, com curvas, com extensões no cabelo, nariz novo, mas com o “velho” namorado obeso e a “velha” família obesa que não foi concorrente do “Swan”. O que é que no futuro prevalecerá: a rapariga de mal consigo, sem graça mas igual a si própria, ou a nova bomba sexy banal e igual a tantas outras?


Da Perplexidade


Não sou puritana em questões estéticas e acredito que cada um pode e/ou deve fazer o que realmente o(a) faz sentir-se bem e bonito(a) seja recorrendo à cosmética, à dermatologia, à cirurgia estética ou plástica. Não faltam recursos para nos sentimos melhor e mais belos(as). O que não entendo realmente são os critérios e as normas que regem as intervenções que as pessoas fazem, o que não entendo são os padrões que definem o que é a beleza e porque é que deve ser aceite e procurada: bicos de pato em vez de lábios finos, narizes confrangedoramente direitos em vez de um nariz com carácter. Banalidade em vez de personalidade e individualidade. O que não entendo é a forma como surgem esses critérios, normas, padrões e com base em que valores e parâmetros estéticos é que se definem, ou será uma questão de facilidade e optimização de retorno financeiro para os prestadores desses serviços (esteticistas, médicos dermatologistas ou cirurgiões)? O que é que se insinua no tecido social? Estaremos todos condenados, num futuro cada vez menos longínquo, a ter bicos de pato e narizes banais?

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