Li com alguma sofreguidão e muita comoção o artigo do Caderno P2 do Público sobre Ingrid Bettancourt baseado em entrevistas dadas por ela a vários media internacionais. É todo ele um ensinamento dado com a enorme simplicidade que o sofrimento que se vence a cada dia com persistência, vontade, disciplina e trabalho interior vai expondo e, pareceu-me num primeiro momento, com uma linguagem que todos entendemos, ou pelo menos deveríamos entender que é a linguagem da humanidade do facto de todos partilharmos esse denominador comum que é sermos seres humanos.
Engano meu. Num relato, tudo ele pungente, Ingrid Bettancourt faz uma afirmação que me deixou chocada, porque ao quantificá-la a tira do universo abstracto das afirmações que se vão tornando lugares comuns ouvidos amiúde do tipo: os nazis eram implacáveis, ou os Khmer Rouge não tinham um pingo de compaixão ou a crueldade estalinista não tinha limites. Creio que ninguém no seu perfeito juízo procura compaixão (não um afastado “ter pena de”, mas um mais próximo “sofrer com”) num movimento terrorista cheio de fanáticos guerrilheiros que sabemos serem treinados e vigiados, nomeadamente para serem carrascos e implacáveis. No entanto, são de seres humanos que falamos e quando se lê nestes relatos de IB que terei contactado com mais de 300 guerrilheiros de todas as idades, de todas as condições. Destes 300, não terá havido mais de dois ou três a revelar um comportamento de compaixão, é profundamente perturbador e esta quantificação é duma violência enorme. Ao longo de seis anos de cativeiro e entre 300 guerrilheiros só dois ou três terão mostrado um comportamento de compaixão; ela mencionou um que lhe forneceu remédios, não falou nos outros dois, não sabemos o que fizeram, quem sabe se um deles se limitou a olhá-la como um ser humano olha para outro? O pior, diz ela, foi ter percebido que os seres humanos podem ser tão horríveis com outros seres humanos. E nós percebemos que a solidão que vem dessa constatação e dessa condição é imensa.