“… he resolved never again to kiss earth for any god or man. This decision, however, made a hole in him, a vacancy…” Salman Rushdie in Midnight’s Children.
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5.8.08

Educação Para a Morte (3)

... ou dando livre curso a algumas ideias a propósito e a despropósito da leitura de Educação Para a Morte de Filipe Nunes Vicente, tendo sempre em mente a máxima do autor: “o que pode acontecer é que através da conversa entre dois humanos um deles consiga organizar a colecção de banalidades que as redondezas da morte suscita.

Nestas conversas entre dois humanos perante a morte, um luto ou sofrimento profundo, muitas vezes há uma banalidade bem intencionada, mas carregada de veneno, que é comum dizer: vai correr tudo bem. Todo o livro de FNV é um manual exaustivo de como raramente tudo vai correr bem, o livro é também um manual de vida sem a esperança sem luz ao fundo do túnel, sem esse consolo dos aflitos, é uma provocação na aceitação tantas vezes da vida sem esperança (pode-se viver sem esperança, pág.47) fazendo-nos crer que o que nos move é uma força indiscernível (pág. 66) cuja origem divide os psicólogos (pág 66) que, ironiza o autor, são uma exigência da cultura ocidental dos últimos cem anos no que ela tem de técnica da alma: somos perfectíveis, só é preciso saber mexer nos botões certos (pág.66). Afinal também eles (psicólogos) acreditam que tudo vai correr bem e também eles acreditam em finais felizes e passam tantas vezes ao lado da “alma”(poder-se-ia abrir um debate sobre o que é isso da alma: fica para um dia...). Ora a morte e o luto transformam (pág.86 citando Lavoisier). Tudo fica diferente. E é essa evidência que é tão difícil para os interlocutores quando se tenta organizar a colecção de banalidades nestes momentos de sofrimento. Fazer crer que tudo vai correr bem, tantas vezes não é mais do que a evidência da incapacidade de lidar com o sofrimento, de o aceitar como parte integrante da vida, e saber partilha-lo com quem sofre. É a distância, a prudência, o não querer demasiado envolvimento. Acreditar na "cura", nessa capacidade da alma em nos tornar perfeitos é uma forma de simpático afastamento do outro, de iludir, de evitar olhar para a “alma”, é mais um sinal deste modo de viver em que tudo tem que "estar bem". Para isso adopta-se o wishfull thinking, a esperança em versão light de que realmente um dia tudo ficará bem.

27.7.08

Educação para a Morte (2)

... ou dando livre curso a algumas ideias que a leitura de Educação Para a Morte de Filipe Nunes Vicente desencadeou.

Acabei o primeiro texto sobre este livro dizendo quão ausente tinha sentido a morte, ou sendo mais precisa o morrer, num livro que é feito sobretudo das ausências e para as ausências – desses buracos escavados no ser – que a morte deixa aos que (sobre)vivem. Nesse sentido mais do que uma educação para a morte o livro pareceu-me uma reflexão e educação para o luto e as várias faces que pode tomar. Na primeira história, a da mãe que vai morrer e deixa filhos pequenos – uma das mortes mais cruéis de se ver morrer, se é que é permitida esta banalidade, (mas segundo o autor “o que pode acontecer é que através da conversa entre dois humanos um deles consiga organizar a colecção de banalidades que as redondezas da morte suscita” e que teimam em desorganizar-se e dispersar-se), esse luto toma uma forma perversa pois é o luto de uma responsabilidade que não se vai honrar, dos filhos que não se vão acompanhar e educar, do amor que não se vai dar, dos filhos que não se vão ver crescer. A forma como se faz a abordagem do tempo e da dimensão que adquire, ou limitado ou infinito em cada instante precioso, é muito tocante.

Tudo no livro se passa a um nível da reflexão, do desafio intelectual, do labirinto filosófico e simbólico, da retórica. Mas a morte não é complacente, é demasiado definitiva, demasiado irreversível, demasiado desconhecida, e sobretudo demasiado presente para quem "sabe" que vai morrer. Essa presença toma conta do ser e quase tudo o resto parece que se cala neste diálogo em frente-a-frente simples e desarmante: eu e a minha morte, que mesmo quando não se sabe de um saber que se faz linguagem e se faz presente, sabe-se de um saber mais visceral que se sente (a lucidez do moribundo, pág 34) ou que se teme e nem se quer verbalizar. Quase tudo, pois o sofrimento físico – outro ausente desta Educação Para a Morte, baralha os dados do binómio e tantas vezes a morte que é vista como a adversária, a inimiga passa a ser quase olhada como uma amiga, como o último conforto, a aliada desta provação. O sofrimento físico, ou melhor o medo do sofrimento físico é tão ou mais temido do que a morte não só de quem vai morrer como da família perplexa e aturdida, e o seu receio centra o debate e negociação internos de todos os intervenientes que mal conseguem dialogar entre eles, num plano terapêutico e médico em corredores ou quartos de hospitais. Mas afinal nestes momentos de solidão no frente-a-frente com a inevitabilidade, o conforto dos rituais de sempre, das pequenas tarefas, obrigações ou prazeres, arranjar as unhas ou as sobrancelhas, ou segundo FNV sentar na cadeira favorita (pág. 23) ou comer bolachas (pág.32), perante a perplexidade dos vivos (“os bem vivos sentem mal este último apego prazenteiro”, pág. 23) tornam-se símbolos de um controle e dignidade que ainda não se perdeu e dão segurança perante os silêncios de que estes momentos são feitos.

20.7.08

Educação Para a Morte 1

(imagem tirada daqui)

Filipe Nunes Vicente (co-autor e principal animador de O Mar Salgado) escreve bem demais para que o que diz faça sentido, faça um sentido, pensei eu ao começar a ler o seu ensaio, cuja retórica atordoa de prazer numa espécie de circuito semântico fechado cujas inúmeras referências filosóficas, literárias e outras servem de ponto de partida para os brevíssimos textos. Confesso que há muito tempo que um livro escrito em língua portuguesa editado recentemente não me dava tanto prazer ler, embora eu saiba que sou péssima a julgar pois leio pouco em língua portuguesa. Assim esta “Educação para a Morte” é uma peça literária antes de mais nada, e um belíssimo livro, com um título que ilude pois nada lá é educativo ou pedagógico quer no sentido mais pragmático quer na intencionalidade com que é talhado; não são apontados caminhos a seguir ou soluções a considerar, ficamo-nos pelas constatações, pela perplexidade, pelos tantos paradoxos que a vida nos traz, pela tentação de uma generalização que não chega a ser feita, pelo evitar da esperança que aconchega.

Sempre enleada ao ler as suas reflexões, fui a pouco e pouco entrando no domínio da alegoria, do símbolo, da alusão, da referência, ancorando-me ao fio de sentido e de continuidade – uma continuidade que é mais uma sequência do que um desenrolar - que cada série nos dá, num trabalho sempre notável e de rara sensibilidade. Ao longo da leitura pensei em Gil Vicente e no "Auto da Alma", pois parecia que estava perante uma versão menos pedagógica, mais erudita, mais moderna (óbvio) e mais existencialista do caminho das almas neste mundo. Tudo isto faz deste livro um livro para os vivos: muito mais para os vivos do que para os mortos. Enganam-se aqueles que esperam educar-se para a morte (a sua ou a dos outros) na tradição de Kubler-Ross ou mesmo de Hennezel. Neste livro a morte, ou dizendo melhor: o morrer é o grande ausente, num ensaio feito sobre a(s) ausência(s) que a morte gera.

Voltarei a este tema, e a este livro.

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