“… he resolved never again to kiss earth for any god or man. This decision, however, made a hole in him, a vacancy…” Salman Rushdie in Midnight’s Children.
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14.12.08

Dos Interditos

Leio, vejo e ouço na comunicação social que o Papa Bento XVI divulgou um documento com mais interdições. Claro que a mensagem subentendida era a de “mais interdições do Vaticano”, mais interditos, interditos sempre mais e mais. Leio os artigos (este, por exemplo) procuro alguma informação (aqui) e agora finalmente preto no branco o que se suspeitava mas ainda não se sabia ao certo: o pensamento oficial do Vaticano sobre a procriação medicamente assistida. Infelizmente, também eu digo: mais interditos em cima dos já conhecidos interditos, mais do mesmo e nada de novo. Voltamos à estaca zero. Ao que já era conhecido em matéria de contracepção e moral sexual agora reafirmam-se esses bem como se afirmam os novos interditos sobre a bioética e a procriação medicamente assistida.

Mantém-se assim a célebre dissonância entre o Vaticano e os crentes que, uns com indiferença e naturalidade, mas outros com coragem individual e contrariedade - coisas imperceptíveis e invisíveis neste mundo feito de dados adquiridos - tomam a pílula, usam o dispositivo intra-uterino, fazem bébés proveta, têm relações sexuais fora do casamento. Tudo um pouco longe desse mundo cor-de-rosa pensado pelo Vaticano onde supostamente se fazem os filhos como “fruto do acto conjugal específico do amor entre os esposos”, os filhos fazem-se como sempre se fizeram: fazendo-se. Aliás esta frase é o paradigma do deste desfasamento que teima em perpetuar-se no corpo da Igreja. É impossível evitar uma primeira e básica reacção: Meu Deus perdoai-lhes que presumivelmente “eles” (se houvesse mais “elas” talvez não se dissessem tantas imbecilidades, mas isso é outra conversa) não sabem do que falam.

Na sua ida aos Estados Unidos, onde vimos para escândalo de tantos Rudolph Giuliani, um reincidente divorciado recasado, comungar, o Papa criticou aquilo que ele considerou como uma moderna forma de catolicismo: o “pick and choose catholicism”, em que as pessoas ajustam a doutrina à medida das suas conveniências e das suas vidas e expectativas ignorando algumas directivas. O Papa Bento XVI tem alguma razão na sua crítica, mas não é com documentos destes e com a habitual posição do Vaticano sobre as questões da sexualidade e da bioética que se minimiza a distância entre os crentes e a sua Igreja. Não falo nem em facilitismos, nem relativismos, muito menos em porreirismos, lembro só que há mais correntes teológicas dentro do catolicismo do que aquela que representa o Papa, que a Igreja é diversa e livremente pensante e esta matéria, mesmo entre teólogos, quanto mais entre os leigos que enchem as igrejas ao domingo e os que não as enchendo dão no mundo o seu testemunho do Cristo vivo, está longe de ser consensual.

Mais do que julgamentos e interditos eu acredito na liberdade que a Ressurreição de Cristo nos dá e na Misericórdia Divina que, porque Deus se fez Homem e porque é isso que todos os anos nesta época o Natal se celebra, essa encarnação em que o Verbo se faz Homem, conhece a nossa condição humana, conhece a curiosidade que nos leva a querer saber mais e conhecer melhor o mundo na forma dos avanços científicos e tecnológicos, conhece a dúvida que nos faz vacilar, conhece a dor e a alegria. Acredito na Igreja (comunidade de crentes, e não só instituição), que melhor ou pior é presença no mundo e que se constrói tantas vezes apesar de interditos e mais interditos.

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