Tive um professor que um dia perguntou à turma o que é que tinha existido primeiro, se o pensamento, se a linguagem. O pensamento, claro, foi a resposta imediata e quase em uníssono. No momento a seguir começaram as hesitações, e o professor meio divertido perguntava-nos como é que nós pensávamos sem linguagem, enquanto alguns dos alunos diziam, pondo em causa a noção da irracionalidade nos animais, que se os animais têm linguagem, então também pensavam. Como se imagina esta pergunta colocada por um bom professor originou uma divertida e exigente reflexão na turma em que nos confrontamos com o facto de linguagem e pensamento serem quase duas faces duma mesma moeda. Cada linguagem espelha uma forma de pensar. Cada forma de pensar é refém de uma linguagem. Tudo isto a propósito das Provas de Aferição (que raio de nome) do 4º e 6º anos do ensino básico e do facto de, em determinadas perguntas de Português nomeadamente nas de interpretação do texto, os erros ortográficos não serem corrigidos pois querem avaliar separadamente diferentes competências. Se não fosse patética, esta frase faria rir pela presunção que carrega em si, de alguém ter sido capaz de separar em compartimentos estanques as diferentes competências que fazem uma língua. Eu não percebi se os erros de sintaxe também não eram corrigidos, e até acho que, em nome da coerência, nenhum erro formal devesse ser corrigido. Ficariam só os erros de semântica, cabendo ao professor corrector das Provas aferir se, para lá da formalidade da linguagem e da arbitrariedade no seu uso que cada aluno clamará para si (sim, pois deve tratar-se de um processo criativo por parte das crianças a ser acarinhado) consegue encontrar um fio de sentido. Se é tão difícil estabelecer separações entre a linguagem e o pensamento, como é que querem desfragmentá-la (ai estruturalismo sempre a espreitar!) e dividi-la em conjunto de códigos estanques, impermeáveis e não relacionáveis, para melhor encontrar o pensamento - o sentido, a interpretação do texto, neste caso? Como é que querem que um aluno - ou pai, ou cidadão - entenda que numa parte de um teste pode escrever com erros e na parte seguinte já não? Isto faz sentido na cabeça de quem? Um erro não é sempre um erro? Talvez estejamos perante um caso moderno de flexi-ortografia.
“… he resolved never again to kiss earth for any god or man. This decision, however, made a hole in him, a vacancy…” Salman Rushdie in Midnight’s Children.
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