“… he resolved never again to kiss earth for any god or man. This decision, however, made a hole in him, a vacancy…” Salman Rushdie in Midnight’s Children.
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4.2.10

Perdido e Não Achado

Quando leio um livro, levo-o frequentemente para onde quer que eu vá. No carro, na mão, na mala (quando lá cabe), nunca me lembro de ter perdido um..., até agora. Estava a acabar, mas ainda não o tinha acabado. No dia em que senti a falta dele, presumi que estivesse no carro e comecei a olhar para a recentemente chegada encomenda da Amazon. Depois procurei: em todos os cantos da casa, na garagem, nos bancos dos carros. Telefonei: para os locais por onde passei nos últimos dias, para os Perdidos e Achados nos Olivais, para a Rádio Táxis cujos táxis utilizei. Nada. Ninguém viu livro nenhum. Ele estava sublinhado e anotado para poder escrever sobre ele aqui. O fado não se compadeceu e estou sem o livro (até encomendar outro). Deixo aqui, no entanto uma breve memória, porque não acredito que o vá reler e anotar tão cedo. Perdem-se os excertos, alguns deliciosos, e uma pequena série que estava a preparar sobre o livro.

Peter Ackroyd, A Retelling of
Geoffrey Chaucer's The Canterbury Tales

Quando, algures num tempo que parecia andar mais devagar, eu li o Decameron (Boccaccio, claro) que me deixou verdadeiramente deslumbrada e fascinada (e já tinha lido tanta coisa), fiquei com vontade de ler os Contos de Canterbury. Depois de comprar o livro, no original, como costumo fazer sempre que posso, abri-o e percebi que teria de decifrar em vez de ler. Senti-me realmente incompetente para essa tarefa e pousei o livro, lamentando não o conseguir ler, mas sem nunca procurar uma tradução. Recentemente, mão amiga ofereceu-me o livro acima ilustrado para grande alegria minha. Peter Ackroyd é um escritor peculiar e interessante, (de quem já li algumas obras) mas não é sobre ele que quero falar, a não ser para dizer da minha alegria no facto de me ter proporcionado a leitura, num inglês compreensível, mas cheio de carácter, elegância e densidade, desta obra fundamental de Chaucer.

Quando leio estes livros percebo porque razão volto e torno a voltar aos clássicos. Nestas obras está “lá” “tudo” o que há para estar; nem mais, nem menos. Tal como no Decameron (Chaucer foi influenciado por ele) a humanidade é tão humana quanto possível, mas nos Contos de Canterbury, o leque e a variedade de personagens e situações dos contos é menor. Também são menos contos do que os cem da obra de Boccaccio. A conjugalidade (homem e mulher casados, ou a casar) em todas as suas variantes e formas é talvez o tema predominante e mais glosado pelos peregrinos que se ajudam a passar o tempo contando e ouvindo histórias. O leque de peregrinos é amplo, mas predominam as classes mais populares, o que dá u tom genuíno e menos formal aos contos, ajudando a olhar essa “conjugalidade” de diversos formas e prismas: ora com imenso humor, ora aspirando à perfeita complementaridade, ora mostrando a sabedoria feita do dia-a-dia ou o desprezo perante a fraqueza, ora sublimando uma ideia de amor ideal ou ajustando-se e acomodando-se à situação que é e que pode ser. Muito actual, certamente. O livro merece ser lido, e lê-se deliciado, do primeiro ao último conto.

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